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PROVENÇA DE CÉZANNE

A viagem corre de acordo com o planejado até que nos aproximamos de Avignon, na França, quando Conor, meu filho que terminou a faculdade recentemente e precisa decidir o que fazer da vida, me acorda de um cochilo com uma mensagem alarmante: "Pai, está nublado".

 Olho pela janela e emito uma exclamação de terror. Os prados que nos cercam parecem inundados, e nuvens carregadas de chuva ameaçam despejar sobre os telhados e os ciprestes.

 Estamos vivendo a primavera mais úmida em anos, e nossas férias, na Provença, serão feitas a pé.

   Montanha Santa Vitória, no sul da França, imortalizada em um dos quadros do pintor Cézanne


 Em pouco mais de seis horas, desde que havíamos saído de Londres, chegamos à estação do TGV em Aix-en-Provence, e calçamos as botas de caminhada.

 O plano é percorrer parte de uma nova trilha de caminhada de longo percurso, a GR2013, criada para celebrar o ano de Marselha como capital da cultura europeia.

 Não é uma trilha comum: foi criada por artistas a fim de revelar aspectos da Provença raramente vistos.

 A ideia é mostrar o inesperado.

 Os pequenos marcos que identificam a GR2013 nos conduzem a uma base abandonada da Segunda Guerra Mundial, hoje enfeitada por plantas florescentes, e depois a uma região campestre de relevo suave.

 Mais adiante, está o nosso objetivo final, a montanha Santa Vitória, que flutua sobre Aix-en-Provence como uma esfinge. Se a GR2013 quer combinar paisagem e arte, é essa montanha que lhe serve de divindade inspiradora, tendo por anos servido como musa ao mais famoso filho da região, Paul Cézanne (1839-1906).

 Ele pintou a geometria geológica do pico 87 vezes, e essa resposta criativa à paisagem eletrizaria o jovem Pablo Picasso.

 Para nossa breve parada noturna em Aix-en-Provence, estou determinado a visitar o estúdio de Cézanne (atelier.cezanne.com), construído de forma a permitir que o artista tivesse uma vista favorável da montanha.

 A pequena casa em que ele vivia sobreviveu miraculosamente quase como ele a deixou: o chapéu do pintor está em um cabide, a mochila dele está ao lado da cadeira, e na mesa de madeira repousa seu último copo de vinho, seco e agora ostentando uma cor púrpura.

 É como se ele tivesse simplesmente voado janela afora e agora viva lá fora com os rouxinóis. A casa está repleta de objetos que reconhecemos com base em seus quadros -o jarro de azeitonas, o rosário de madeira, as garrafas vazias e o boneco de um querubim sem braços, objetos corriqueiros que ele transformou em imagens deslumbrantes e poderosas.

 Gabriel, nosso guia na visita ao estúdio do artista, nos exibe a porta alta pela qual Cézanne podia levar telas de tamanho grande ao jardim da casa, para pintar com iluminação natural. "Ele vivia da mesada do pai, e quando o pai morreu, herdou tudo."

 A persistência de Cézanne como pintor deve ter sido irritante para o pai.

 Ninguém gostava das obras do jovem pintor, exceto ocasionais visitantes norte-americanos.


No estúdio, um andar acima, há um gaveteiro sob a janela, contendo recordações, fotografias e suvenires, entre os quais uma carta de Monet e o cachimbo de argila que faz parte de "Os Jogadores de Cartas".

 Em 2011, mais de um século depois da morte de Cézanne, uma reportagem da "Vanity Fair" informava que uma das cinco versões do quadro foi vendida em leilão por mais de US$ 250 milhões (cerca de R$ 530 milhões).

 É uma vergonha que seu pai não tenha vivido para ver o momento em que um quadro do filho se tornou a pintura mais cara já vendida em um leilão ou em uma transação privada.

 Ao deixar o estúdio, subimos a colina a fim de encontrar o ponto de observação do qual Cézanne pintou muitas de suas famosas paisagens do monte.

 O pico será o nosso objetivo amanhã, mas primeiro quero ir ao café favorito de Cézanne, o Les Deux Garçons. Caminhamos pelo crepúsculo pela cidade velha de Aix-en-Provence, admirando as altas edificações de pedra e as ruas estreitas que se abrem em praças adoráveis.

 Paramos para comer em uma delas, e depois seguimos até o cours Mirabeau, um bulevar largo e arborizado onde, no número 53, encontramos Les Deux Garçons.

 O café não mudou desde que Cézanne tomou seu último vermute aqui.

 De manhã, descemos do táxi na aldeia de Saint Antonin-sur-Bayon, no sopé da montanha.

 Em uma ponta rochosa sob as encostas da montanha Santa Vitória, chegamos a uma área pavimentada de pedras com um barracão conhecido como "Refúgio de Cézanne", em um dos locais que o pintor usou para retratar o monte. Lá começamos a galgar a colina, abrindo caminho entre as moitas de íris selvagens.

 A cada patamar de altitude do caminho, a botânica muda. Pequenos narcisos dão lugar a tulipas e a orquídeas. Estamos gratos pelo tempo nublado. No verão, o percurso seria muito quente (as autoridades muitas vezes fecham a trilha para prevenir incêndios de verão -portanto, é melhor verificar antes de partir para a viagem).

 A tarde está chegando ao fim quando atingimos o velho priorado, cujas pedras cor de mel estão marcadas por mais de três séculos de pichações. Construído no século 17, ele caiu em ruínas durante a Revolução Francesa e depois foi reconstruído por voluntários nos anos 50. Aninhado em uma crista de pedra calcária com vista para o Mediterrâneo e os Alpes, é um local deslumbrante para passar a noite. Procuramos nos fundos da construção e encontramos o refúgio, uma grande sala com dois bancos compridos para dormir e uma lareira.

 O dia está se esvaindo e a chuva começa a cair, e os outros grupos de caminhantes iniciam a descida. Um deles, veterano de noites no refúgio, avisa que "a noite será fria".
 Partimos, carregando lanternas. Essa parte da montanha foi comprada por Picasso logo depois da morte de Cézanne.

 O espanhol se mudou para o Castelo de Vauvenargues, mais abaixo. A visão única de Cézanne havia inspirado o espanhol a buscar o território inexplorado do cubismo.

 Agora, com o sol baixo desaparecendo, temos novas amostras da galeria luzes e formas que a montanha oferece. Os vales e montanhas abaixo desaparecendo aos poucos, em formas escuras, e as cristas mais além se estendendo em camadas de laranja.

 Compreendo, assim, por que Cézanne enfrentou dificuldades para retratar o que via, pintando as mesmas paisagens vezes sem conta, tentando capturar algo mais do que aquilo que uma visão transitória propicia.

 De volta ao refúgio, acendemos um fogo na lareira e assamos batatas, que comemos com salsichas de porco selvagem e vinho tinto barato. Será uma noite de pura tranquilidade e de paisagens montanhesas.

 Conor e eu poderemos ter uma discussão de pai para filho sobre seu futuro. Poderei mencionar a vida de Cézanne e sua determinação de seguir sua paixão e talento (ainda que eu talvez deixe passar sem menção a teimosia dele em não seguir os conselhos paternos). Mas nesse momento ouvimos um barulhão.

 No pátio, há um grande grupo com cinco mulas. Uma equipe de filmagem chegou, acompanhada por atores e pessoal de apoio, para a produção de um filme que será exibido no Festival de Avignon do ano que vem.

 A noite tranquila desapareceu, substituída por uma noitada agitada. A conversa de pai para filho terá de esperar, mas talvez Cézanne já tenha apresentado o melhor argumento em meu nome.

 Acordo cedo com o sol brilhando entre as persianas. Será verdade? Do lado de fora, tropeço até o parapeito e contemplo o magnífico panorama de nuvens concentradas abaixo do pico. Estamos à deriva em um mar branco, e por sobre nós vejo enfim o sol da Provença.

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